Cafés, fermentos e boa conversa

Cafés, fermentos e boa conversa

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Cheguei em Mococa sem GPS. Pelo site da fazenda eu segui as instruções e deu tudo certo. Não era tão difícil assim. Saindo de Ribeirão Preto, o trajeto é bem para o interior do estado, nesta parte quase Minas. Por aqui não há uma mudança muito brusca entre SP e MG, em questões culturais. A verdade é que todo mundo gosta de tomar café, comer um porco e ter uma boa prosa.

Foi por conta da vinda de Sandor Katz ao Brasil que essa viagem acabou se tornando possível. O pessoal da FAF (Fazenda Ambiental Fortaleza) organizou junto ao produtor Thiago Hila uma programação extensa e com muita troca de conhecimentos e experiências sensoriais. Sandor esteve no Brasil para várias aulas, workshops, vivências e uma workclass que aconteceu no Unibes Cultural. Esses projetos foram desenhados pela Leticia Janicsek, da Woman on Food, que tem feito um trabalho muito interessante na gastronomia, correndo na lateral com networking internacional e participações em muitos eventos fora do país. Agora ela se dedica a movimentar por aqui uma parte do setor. A Farofa Magazine foi convidada pela Letícia a ser parceira nos eventos, tivemos até uma banquinha, na feira da Masterclass, com distribuição das últimas revistas impressas que tínhamos da primeira impressão da revista.

Felipe Croce, Felipe Cruz, Silvia Barreto, Bel Coelho, Sandor Katz, Thiago Hila e Leticia Janicsek (Woman on Food), responsáveis por tanto conteúdo compartilhado. (foto Felipe Janicsek)

Mococa tem muito potencial para ter um turismo regional bem frequentado. Sabe o que tem por ali? O Rio Pardo. Nasce em Minas Gerais, são mais de 500 km de extensão. Passa pela famosa Califórnia Paulista, região cafeeira que sobrou aqui pelo estado de São Paulo. Ouvi dizer, em uma conversa informal com o Marcos Croce, que existe um projeto com as Cidades Amigas e a questão das “Águas Limpas da Bacia do Rio Pardo”.  Muita coisa boa sendo conversada para ser condensada em um plano turístico.

Imagina um turismo bem direcionado onde as pessoas possam provar as delicias que são produzidas nas fazendas e cidades desta região. Doce de Leite, queijos, biscoitos de nata, rapadura, cachaças, cafés. A gastronomia caipira e local, a simplicidade das coisas boas. Por ali são pelo menos 10 cidades e 10 fazendas que estão conversando sobre esse projeto. Estão adubando ideias. Outras fazendas que existem na região estão se organizando também. Os alimentos derivados (queijo derivado do leite, cachaça derivada da cana-de-açucar, px) são a ponte entre o produtor e o consumidor, passando pela mão de quem tem técnica (tradição e cultura) para transformar.

Já acontece na cidade pelo 4º ano seguido, o Festival Ilumina, onde músicos do mundo todo se reúnem para tocar música clássica enquanto ensaiam na FAF.

DIA 1

Cheguei no meio da tarde do dia 12 de dezembro. O pessoal estava se reunindo para uma caminhada pelo cafezal. Nos agrupamos antes no pátio de cimento, onde na época de colheita se secam os grãos. Fizemos uma roda e nos apresentamos. Foi diferente. Os brasileiros eram em menor número e toda a conversa dali para a frente seria em inglês. Mais aprendizados do que eu esperava.

Patio da FAF. (foto: Felipe Janicsek)

Começamos a andar e entender um pouco mais sobre os diferentes tipos de plantio. São pelo menos 3 anos para um pé de café começar a produzir. A boa notícia é que hoje no Brasil já temos visto o processo de plantio e colheita melhorar, um pensamento de Agrofloresta. Temos profissionais da xícara à terra. Aprendemos novos métodos de extração. Começamos a discutir e agir com sustentabilidade. Fazemos hoje café com fermentação controlada (buscando mais sabor) e por fim, também estamos entendendo os Off Flavors e tratamos a bebida com seriedade e mais respeito. Não é só uma comódite. Olhando o mercado, somente 5% do consumo de cafés no Brasil são de cafés especiais. Nos Estados Unidos este número é de 25%. É uma estrada longa que começamos a trilhar.

VIZINHANÇA

Uma das fazendas vizinhas produz cachaça e fomos ao entardecer conhecer o engenho. Roberto Salles Machado, empresário, nos recebeu e mostrou o projeto. Não é só fazer cachaça ali, é reviver o passado nesse processo. Nem tinha provado a cachaça ainda e parecia que tínhamos sido transportados para a Itália. A Fazenda existe desde 1890 e já teve café antes da cana-de-açúcar. Como não se vive só de fazer água-que-passarinho-não-bebe, também tem um frigorífico, o Cerrado Carnes. Fizemos uma degustação das cachaças Casa do Engenho e comemos beliscos de fazenda. Na volta, já escurecendo, uma chuva de vaga-lume nos esperava nas estradas de terra que sacudiam a caminhonete.

Thiago Hila, Roberto Salles, João Neto e Marcos. (Foto Felipe Janicsek)

DIA 2

Acordamos em uma das diversas casinhas de colonos que estão sendo reformadas na FAF. Antigamente o número de trabalhadores ali era maior, as pessoas tinham suas vidas formadas dentro das fazendas. Corta a lenha e coloca no fogo se quiser tomar banho quente. Cozinha de fogão com panelas de ferro e muito cheiro de madeira queimada, aromatizador natural do ambiente. Vida simples e que hoje podemos apreciar de longe, fazendo fotos com nossos telefones.

Não era qualquer café da manhã. Era bolo de fubá quentinho, café coado clarinho, torta de pão de queijo e debaixo de uma frondosa jabuticabeira. Depois de um começo mais calmo, passamos para as atividades do dia.

Montagem para fazer cupping. (Foto: Felipe Janicsek)

Nunca tinha feito “cupping” (termo em inglês para degustação do café por profissionais para avaliar sensorialmente a qualidade do produto), e foi muito interessante observar todos os processos necessários para uma degustação. Estou acostumada com cerveja, todas essas técnicas foram novidade para mim.

Começou falando Felipe Croce, da Isso é Café de São Paulo e também parte integrante da família da FAF que junto com uma rede de produtores, fazem do mercado um lugar de cafés mais vistos de perto. João, do sítio Canaã, também estava ali, é um dos parceiros que tem o café avaliado pelos cuppings e já mudou muitos processos dentro da fazenda, entende que a qualidade final na xícara valoriza muito os esforços que tem feito. Contou um pouco da sua experiência e modificações que tem feito.

Muito é falado sobre as “ondas do café”, movimentos que acontecem para modificar e ter mais tecnologia e entendimento. Até pouco tempo vivíamos a terceira onda, agora parece que o movimento acelerou e a quarta onda do café já chega com tendências diferentes para o serviço, extração, plantio, cuidados e sustentabilidade da cadeia toda.

HIDROMEL

Rita Croce, da família FAF, quando está na Fazenda produz hidromel e cerveja. Nos serviu um pouco de ambos. Falou um pouco sobre como é o processo de fazer hidromel e o que esperar de uma bebida assim. Em um papo rápido, explicou as pessoas sobre a bebida mais antiga do mundo e como nos distanciamos de algo tão delicioso. O cuidado com as abelhas tem sido pauta em vários diálogos mundo a fora, não é só a importância do mel, mas trazer significado para uma bebida com esta também nos ajudar a puxar assuntos mais complexos. Silvia Barreto, que dedica sua vida ao cuidado da FAF, recebe cientistas, estudiosos e profissionais que discutem essa preocupação.

Degustação do Hidromel da Rita. (foto: Felipe Janicsek)

PANC´S (Plantas alimentícias não convencionais)

João Neto é um senhor com semblante simpático. Fazendeiro da região, teve monocultura durante muito tempo. Com algumas mudanças drásticas na vida pessoal, mudou também seu entorno. Começou a olhar a terra com olhos mais próximos e vê em cada coisa, um propósito diferente. Transborda conhecimento e compartilha com quem que esteja disposto a ouvir boas histórias. Nos falou que antes cortava árvores que nasciam naturalmente e com a mudança de paradigma, teve que começar a plantar árvores. Conversa e pergunta para a natureza do que ela precisa. Falou poeticamente sobre as sementes que são leves e têm asas, voam livremente para germinar por aí. As sementes pesadas que são saborosas e assim os bichos ajudam nesta importante tarefa de semear por aí.

João Neto, cativante desde o sorriso. (Foto Felipe Janicsek)

Foi a primeira vez que ouvi falar de Ernst Götsch. Ele é um agricultor e pesquisador suíço, criou um conjunto de princípios e técnicas que transformam a agricultura Sintrópica. Com quase 50 anos de experiências, desenvolveu uma agricultura que harmoniza produção agrícola e recuperação de áreas degradadas. Para quem gosta do tema, vale a pesquisa.

Depois, um super almoço com preparações de Bel Coelho, Felipe Cruz e seu cozinheiro Cristiano Santos e o time sensacional de cozinheiras que já existe lá na fazenda. Molhos fermentados, legumes da horta, caldos saborosos e uma sobremesa de fruta nativa, aquelas delicias que misturadas com técnica, transformam nosso paladar e abrem mais uma porta para o prazer encontrado no sabor. O cardápio era uma farofa de milho com feijão bolinha e taioba com couve. Pernil com molho de jabuticaba fermentado (que o Seu João levou e abóbora cabotchã ao forno com ervas e arroz vermelho.

QUEIJOS, KOMBUCHAS & CERVEJAS

A tarde fizemos uma roda em um galpão onde são colocadas as sacas de café durante a alta temporada. Falaram os italianos da fazenda Terra Límpida, quase vizinhos, vindos de Cássia dos Coqueiros, local também de boas estradas que nos levam ao café e as comidas. Lá, eles vivem uma comunidade. Ouvir o leite, conversar com ele, respeitar seu tempo. Poesia em forma de respeito com o produto. Degustamos os queijos, crus. Saborosos e bem diferentes dos fatiados que estamos acostumados.

Organização da mesa de queijos que seriam devorados, da Terra Límpida. (foto Felipe Janicsek)

A Kombucha é um fermentado de chás. Conhecido como refrigerante natural, tem a capacidade de aceitar muitos sabores e diferentes misturas. Fácil de fazer em casa, um cultivo de microrganismos que ajudam nossa flora a funcionar melhor e com nada de químicas, quase tão borbulhante como os cheios de palavras difíceis refris. O Kim, da Tchá Kombucha levou uma degustação de dois rótulos que eles tem e explicou um pouco mais sobre o processo.

A cerveja é uma das bebidas fermentadas mais antigas do mundo. Descoberta a milênios, elevou o processo de fermentação e trouxe muita tecnologia que é usada em todo o setor de alimentação. Para representar essa parte importante, estava a Cervejaria Dádiva, do interior do estado de São Paulo, na cidade de Valinhos. A cervejaria tem se destacado no cenário nacional com rótulos bem executados e inovações saborosas. Além de produzir seus rótulos ainda faz o papel de receber as cervejarias ciganas que não tem casa fixa. Na ocasião provamos duas cervejas com características fortes da presença de levedura e seu papel em atribuir diversificados sabores. Uma da qual eu sou super fã, a Pink Lemonade. Uma mistura rosada, mais ácida e com muito sabor.

A CONVERSA COM SANDOR KATZ

De cara ele nos coloca no mesmo balaio de todos. “Todo mundo no planeta consome fermentados”. Essa transformação, o metabolismo, a energia anaeróbica ou aeróbica que acontecem com micro-organismos é bastante saudável. Nem tudo é gostoso, claro! Mas devemos olhar a decomposição como ruim e também boa.

Sandor Katz e a Chef de cozinha Bel Coelho. (foto Felipe Janicsek)

Sandor nos mostra que é preciso olhar com mais tranquilidade. Apesar de ser uma comunidade complexa de pequenos seres, existem muitos benefícios gerados. Transformar os nutrientes, ajudar em nossa digestão, desintoxicação, são itens que podemos listar dentro das qualidades que a fermentação tem em nossas vidas.

Sabor, sabor, sabor. Carnes curadas, chocolate, baunilha, shoyu, mostardas, vinagres. São tantos os itens que temos em nossa cozinha, que nem sabemos mais quais os processos que advém essas coisas.

Sabemos que as bebidas com álcool são fermentadas. Damos uma grande importância ao vinho e a cerveja, além dos destilados. Os alimentos também podem ser vistos com esses olhos quando falamos de fermentação.

É claro que existe um receio. São bactérias e muitas delas podem não ser tão agradáveis. Isso tem um impacto grande sobre nossos medos, mas em geral podemos confiar no que a milênios tem sido feito. As técnicas de fermentação são ancestrais, partes remotas que sobram da história. Temos reduzido nossa biodiversidade e nosso sistema imunológico. É hora de repensar o que vai nos ajudar.

Para isso, propagamos as técnicas e as boas leveduras. Não à toa Sandor é considerado um guru da alimentação fermentada. Fala com conhecimento, transmite sabedoria e coloniza novas terras com sua forma de falar sobre a fermentação. Que aula. Quem gostar do tema, deve comprar seu livro, tem livro link aqui.

VINHOS BIODINÂMICOS E NATURAIS

Já no final do dia, ao anoitecer, uma pizzada estava pronta para nos receber. O forno a lenha estava exaltando suas brasas e a massa que preparou os “discos”, já estava a muitas horas trabalhando a sua longa fermentação. Muitos ingredientes cortadinhos enfeitavam a mesa cheia de travessinhas e potinhos de cerâmica. Coisas tradicionais, comidas fermentadas, ingredientes frescos, maturados. Cada um podia, a sua maneira, preparar para todos um exemplar de pizza.

Assim era a leveza do ambiente. Muito diálogo em torno dos assuntos conversados durante essa vivência. O bate-papo correu solto, aqueles temas que levam a histórias passadas, projetos futuros e sabores presentes. Para molhar as palavras, não podia se ter um cuidado diferente dos outros produtos. Bebemos e comemos durante o dia com uma consciência mais atenta a tudo que gira a cadeia, não seria diferente com o vinho.

O sommelier de vinhos explica sobre a produção de vinhos naturais. (foto Felipe Janicsek)

Bruno Correa Bertoli é sommelier e nos contou sobre vinhos biodinâmicos e naturais. Só tinha ouvida falar nisso, ligeiramente por conta da Lis Cereja da Enoteca Saint Vin. Bruno, além de conhecer muito sobre vinhos, conhecimento que trouxe a pouco tempo da sua temporada na Europa, faz desenhos lindíssimos que ilustram os cardápios do Capivara Bar em São Paulo. Me pareceu que sem uma pessoa para me guiar neste novo mundo vinícola, seria um caminho difícil de trilhar sozinha. Mas com um pouco mais de conhecimento sobre a proposta, o vinho se mostrou bem além do que eu esperava. Não é um vinho qualquer, assim como todos os outros produtos que estão longe da linha que a indústria rotulou.

DIA 3

O que fazer ao final de uma nova vivência como esta? Bom, começar o dia com um bom café, para erguer nossas forças, comer para alimentar a alma, consumir produtos que respeitem nosso organismo, tentar melhorar nossa rotina. Pensar mais no alimento e em como ele chega a nossa mesa, quem são os responsáveis, quais são os valores que isso nos trazem. Falar incansavelmente em sustentabilidade de uma forma que não pareça que estamos lidando com a “moda” de “estar” sustentável. Lidar com o setor de gastronomia, agronomia de uma forma mais unida onde podemos trocar os estudos que cabe parte tem feito.

Turma da Vivência na Fazenda Ambiental Fortaleza

Vamos entender como o turismo vai ajudar a melhorar a economia das pequenas cidades que vivem da agricultura e longe do capitalismo louco em que estamos inseridos. O papel do cidadão, a responsabilidade de divulgar boas iniciativas dos profissionais.

Ao seu redor, na sua cidade, perto de onde você mora, o que tem por aí? Quais são os quitutes da sua região? Para e pensa em como pode ser gostoso descobrir tudo isso.

Entrevistei o Felipe Croce, mas como a matéria ficou grande demais, coloquei aqui neste LINK.

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