Expectativas, ansiedades, decepções e nostalgia: A análise emocional da cerveja

Expectativas, ansiedades, decepções e nostalgia: A análise emocional da cerveja

- em Artigos
Stefen Cosma via Unsplash

foto Stefan Cosma, via Unsplash

Durante o primeiro curso de análise sensorial de que participei, há uns seis anos, com a mestra Amanda Felipe Reitenbach (uma das mais destacadas cientistas brasileiras pesquisadoras da cerveja), após provarmos a amostra batizada com 4-vinil-guaiacol, um dos colegas de turma afirmou, categórico, que tinha “cheiro de consultório de dentista”. Achamos graça da associação, já que era praticamente unânime na mesa se tratar de aroma de cravo, que conhecíamos a partir de certos alimentos. Descobrimos em seguida, na explicação da professora, que ambos estavam corretos; o fenol do qual provém o aroma característico da especiaria culinária é empregado na preparação da famosa “massinha” para cavidades nos dentes. Falávamos da mesma coisa, por meio de experiências distintas.

A lição que extraí daquele episódio moldou minha relação com a análise sensorial de cervejas. Não persegui com afinco essa capacidade, apesar de ter alcançado um nível decente de proficiência, e após passar alguns anos buscando explicações em diversos ramos da ciência, a conclusão a que cheguei (que não reivindico ser cientificamente rigorosa, importante notar) é que cada degustação é uma experiência única, impossível de ser recriada/repetida.

Ninguém bebe exatamente a mesma cerveja que o outro, nem bebe duas vezes a mesma cerveja. Isso porque não só cada ser humano tem um determinado nível de sensibilidade a certos sabores e aromas, como tem uma relação emocional própria com cada um destes sabores e aromas, que vai se modificando com o passar dos anos. Da mesma forma, a cerveja nunca é exatamente a mesma – seja por pequenas variações acidentais na produção ou mudanças deliberadas mais significativas nas receitas.

Ao falar de uma cerveja, portanto, a única coisa que podemos realmente descrever com precisão e consistência é a nossa experiência singular com aquela amostra específica degustada da bebida.

Há entre os especialistas em cerveja quem diga que paladar e olfato “evoluem” com os anos. Isso me levou a questionar: paladar e olfato realmente “evoluem”? Não encontrei evidência científica de que existem alterações do respectivos receptores, no nível celular. Prefiro dizer, portanto, que olfato e paladar “mudam” com as horas-copo acumuladas.

O que pode “evoluir”, creio, é a capacidade da pessoa de processar intelectualmente e expressar a sua experiência sensorial e emocional, usando códigos amplamente reconhecidos e aceitos. Mas esse tema pertence a campos como linguística e comunicação – áreas de conhecimento infelizmente não tem participação muito influente no mundo da cerveja. Sobram cervejeiros engenheiros químicos, biólogos, físicos… faltam antropólogos, comunicólogos (tento fazer minha parte nessa área, dentro das minhas limitações), filólogos, filósofos, historiadores, psicólogos, semiólogos, sociólogos… #AlôGaleraDeHumanas

Pelo lado emocional, me parece claro que segunda vez que você bebe Westvleteren 12, Samuel Adams Utopias, Pliny the Elder, Sink the Bismark, DeuS não é igual à primeira. E isso vale pra qualquer outra cerveja, mitológica ou não. Há uma infinidade de cenários possíveis em cada ato de consumo de cerveja. Consigo pensar em alguns:

– O “encanto” que a fama da cerveja gerou pode ter sido quebrado por um sabor/aroma indesejado.

– O “encanto” pode ter sido ampliado pela confirmação de alguma característica que se esperava ser predominante ou destacada.

– Pela mudança nas condições de acesso (melhor distribuição, preços mais baixos, melhora de poder aquisitivo do degustador), a cerveja x que um dia foi muito especial pode se tornar mero acessório do cotidiano.

– A cerveja pode ter sido bebida na companhia uma pessoa querida do degustador, ou ter sido consumida em outra ocasião especifíca que provoque uma ligação afetiva reforçada a cada degustação.

– Devido a alguma característica anunciada, a expectativa do degustador em relação à cerveja era negativa ou neutra, e a experiência se mostrou inesperadamente positiva.

– Pode ser uma cerveja que a pessoa demorou anos para experimentar porque só teve acesso a uma garrafa e a cerveja era altamente recomendada para envelhecimento.

– Pode ser uma cerveja que a pessoa experimentou após ou junto com uma determinada comida que interferiu com a sua percepção.

– A cerveja pode remeter a sabores ou aromas de alimentos preferidos da infância, evocando memórias afetivas diversas ligadas ao consumo destes.

Foto @rawpixel via Unsplash

Analisar sensorialmente uma cerveja de forma apropriada, identificando corretamente os compostos químicos acima dos respectivos limiares de percepção, é uma habilidade conquistada e mantida com muito treinamento, e as pessoas que fazem disso profissão são sem dúvida valiosíssimas para o meio cervejeiro em geral. Tenho a satisfação de conhecer – pessoalmente ou virtualmente – várias. Uma delas chamávamos carinhosamente, entre camaradas, de “Nariz de Ouro” . Suas descrições

Mas, por mais que a ciência seja necessária para criar os produtos cervejeiros, a análise destes precisa de mais olhares voltados para os aspectos cognitivos e afetivos das experiências cervejeiras.

A resposta que mais li/ouvi nas vezes em que pedi a recém-chegados para elaborarem mais nas suas descrições foi que eles “não sabiam explicar exatamente”. Minha réplica é, em essência, que não acho que alguém deve ser menosprezado ou ridicularizado por não conhecer o suficiente os termos técnicos ou por estabelecer analogias muito particulares nas descrições, e que é perfeitamente válido e relevante descrever sua experiência cervejeira usando seu vocabulário e jeito de falar normalmente.

Às vezes, funciona; a pessoa baixa a “guarda” e detalha um pouco o que apreciou/desagradou. É uma estratégia que favorece o diálogo, a troca de conhecimento. Todos ganham. Fica a sugestão para os que ainda insistem na zombaria e na soberba por conhecer um limitado jargão ao lidar com estes novatos. Que tal adotar uma postura mais acolhedora e respeitosa em relação às experiências dos outros?

Você também pode gostar

Barão Geraldo ganhou badalado bar da RuEra

Seguindo a tendência de marcas ciganas cervejeiras abrirem